A sexta-feira é Santa. Santa pra quem?
A sexta-feira é Santa. Santa pra quem?
Hoje é sexta-feira santa. Mas eu me pergunto: santa pra quem? Porque, pra mim, sinceramente, não tem nada de santa. Vejo o mundo tomado por “Deus” — é Deus pra cá, Deus pra lá — nos discursos, nas pregações, nos gritos, nas cobranças. Mas esse Deus que todo mundo fala, esse Deus que dizem estar em tudo, eu não sinto.
E não é de hoje que isso me incomoda. Eu lembro que o primeiro livro que li na vida, ainda menino aqui em Olinda, por volta dos meus oito anos, foi A verdade que conduz à vida eterna. Minha avó era Testemunha de Jeová. E eu, sem saber ao certo o que era isso, fui entrando no ritmo, levado por ela, frequentando reuniões, batendo de porta em porta nos domingos. Eu era só uma criança, educada religiosamente como tantas outras. Mas um dia eu me perguntei: testemunha de quê? De quem? E foi aí que eu comecei a me libertar. Não foi fácil. A vida era de uma dureza sem fim. Estamos falando dos anos 70 e 80, no período pós-ditadura, ainda sob as sobras daquela porta dura que foi a repressão.
Era um tempo de miserabilidade. Aqui em casa, o creme dental era sabão em pedra. Uma escova de dente era luxo. A gente vivia no básico do básico, e mesmo assim vinham dizer que Deus estava olhando, que Deus cuidava, que Deus testava. Mas o que eu via era fome, era abandono. E esse Deus, sumido.
Com o tempo, Deus virou só uma palavra no meio de tantas. Uma palavra que muita gente usa pra calar os outros, pra impedir que se pense por conta própria. Uma palavra que virou desculpa pra exclusão, julgamento e opressão. Hoje, aos 60 anos, o que vejo é um mundo onde se você não é do "Deus deles", então você está errado. E não basta estar errado: você tem que ser punido por isso. É como se o mundo tivesse virado um tribunal e Deus, um juiz que só ouve seus advogados escolhidos — aqueles que batem no peito pra dizer quem vai pro céu e quem vai pro inferno.
Mas eu não consigo acreditar nesse Deus que eles falam. Acredito, sim, no Deus que existe em mim. No Deus que se revela no silêncio, na minha respiração, nas coisas que faço com verdade. Esse Deus eu não preciso adorar — eu vivo com ele. Ele não me cobra, não me julga, não me ameaça. Ele me acompanha no meu jeito de ser, de pensar e de sentir.
Só que às vezes, como hoje, eu me canso. Me canso de tanto “Deus” na boca dos outros. Me cansa a ausência dele quando eu mais precisei. Me cansa a presença forçada, invasiva, cheia de regras. Me cansa o julgamento vindo de quem diz estar com Deus, mas carrega nos olhos mais ódio do que o próprio capeta que eles tanto amaldiçoam. E quer saber? Às vezes eu acho que me identifico mais com o diabo deles do que com o Deus deles. Porque ao menos o diabo parece ser honesto em sua rebeldia, enquanto muitos desses “homens de Deus” mentem até quando dizem amar.
Tem um verso que Maria Bethânia interpreta lindamente no poema Cântico Negro, do poeta angolano José Régio, que diz: “Eu nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.” E essa frase mexe comigo. Porque talvez eu seja isso mesmo: uma mistura. Um resultado da tensão entre fé e dúvida, entre obediência e liberdade. Eu sou filho desse meio. Não sou seguidor cego nem santo de altar. Eu sou quem questiona. E é nessa fronteira que eu me entendo.
Se há uma santidade nessa sexta-feira, talvez ela esteja exatamente aqui: no direito de pensar, de sentir, de escrever — e de viver minha verdade sem ter que caber na fé dos outros.
Fernando Kabral Olinda, sexta-feira santa – 18 de abril de 2025 - 10:15
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